segunda-feira, 21 de junho de 2010

DRÁUZIO VARELLA E A LEI ANTIFUMO

A lei antifumo foi aprovada há um ano. Nenhum bar, restaurante ou hotel faliu nem houve desemprego

Já me xingaram por eu haver dito o que penso, mas uma vez fui vaiado antes de pronunciar a primeira palavra. Foi na Assembleia Legislativa de São Paulo nos dias que antecederam a votação da lei que proibiu o fumo em ambientes fechados. Com uma claque numerosa, o sindicato dos empregados de bares e restaurantes havia lotado as cadeiras destinadas ao público, com a finalidade de pressionar os deputados a votar contra. Gritavam palavras de ordem, sopravam apitos e agitavam bandeiras coloridas; clima de arquibancada em dia de clássico do glorioso alvinegro.
Fiquei um pouco desconcertado, esperei a algazarra terminar e acrescentei no tom mais conciliador que consegui: “Eu, se trabalhasse nas condições de vocês, faria de tudo para demitir a diretoria de um sindicato que nunca moveu um dedo para cobrar adicional de insalubridade em benefício dos associados”. Depois disso, pude continuar.
A lei antifumo foi aprovada há apenas um ano. Nenhum bar, restaurante ou hotel faliu nem houve desemprego. Pelo contrário, em muitos deles o movimento aumentou. Defender o direito de obrigar os circunstantes a fumar por tabela e a liberdade do cidadão para prejudicar os outros sem ingerência do Estado ficou fora de moda. Atrever-se hoje a justificar essa linha de pensamento é cair no ridículo.
Mais de 90% dos paulistas aprovaram a lei; entre eles, a maioria dos que fumam. Coisa mais civilizada tomar um chope com os amigos ou levar a família para almoçar sem expor crianças, mulheres grávidas e pessoas mais velhas à toxicidade da fumaça alheia. Parece distante o tempo em que, ao chegar em casa, precisávamos tomar banho e jogar a roupa no cesto por causa do cheiro de cigarro que impregnava até o cabelo e o sutiã das mulheres.
Em SP, o cumprimento das novas regras ultrapassa 99%, número ao qual jamais haveríamos chegado sem a participação ativa da sociedade. Segundo pesquisa do Incor, os índices de monóxido de carbono nos estabelecimentos fechados caíram 80%. E, como subproduto, a procura de tratamento para abandonar o fumo aumentou 40%.
Esses resultados despertaram uma reação em cadeia pelo país inteiro. Pelo menos 12 Estados aprovaram legislação semelhante. Em cidades como Belo Horizonte e muitas outras, a proibição nos bares, escritórios e restaurantes começou a ser implantada voluntariamente antes que a lei fosse votada.
Mesmo nos Estados mais permissivos, cidades pequenas, distantes dos grandes centros, criaram leis municipais para banir a fumaça dos espaços em que convivem fumantes e não fumantes.
Indiferentes a essa movimentação da sociedade brasileira, o governo federal e a maioria de nossos legisladores aquartelados em Brasília ainda mantêm em vigor a pré-histórica lei 9294/96 que permite o fumo em “área destinada exclusivamente para esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente”, como se essa proeza circense fosse exequível.
Colocar no papel uma besteira dessas pega até mal para o país. Com base em inúmeras evidências científicas, a Organização Mundial da Saúde adverte que é inútil separar fumantes de não fumantes em ambientes fechados: tecnologia nenhuma conseguiu criar sistema de exaustão capaz de aspirar 100% da fumaça de cigarro nesses locais.
Basta o cidadão ser alfabetizado em rudimentos de física para saber que: “Em qualquer recipiente os gases se expandem de modo a ocupar o máximo de volume disponível”. Até que esse princípio seja revogado, quem conseguirá impedir que a fumaça se espalhe?
Não faltam exemplos de desafios que as sociedades enfrentaram adotando comportamentos muito à frente da legislação. No Brasil, em particular, com burocracia paquidérmica e falta de sintonia dos legisladores com os anseios da população, tais contradições se agravam.
Mas este é um ano de eleições, acontecimento que tem o dom de transformar nossos homens públicos em seres humanos mais sensíveis. Que tal uma lei federal que proíba fumar em ambientes fechados válida para o país inteiro?
A permanecer como está, os senhores acham justo que a saúde de um paulista, de um mineiro ou de um carioca tenha mais valor do que a de um brasileiro governado por pessoas mais ignorantes?

Dráuzio Varella, Folha de São Paulo, 19/jun/2010

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